sábado, 22 de setembro de 2012

Dia desses

- Ah, mas você pode tentar de novo.
Disse aquilo com uma cara tão inocente que me desanimou de responder. Eu tinha discutido a tarde inteira, não aguentava mais. Resolvi deixar passar.
- Ih olha lá.. você fez errado de novo. Bom tudo bem, vamos tentar outra vez.
A mesma cara inocente, eu novamente tentando manter a paz interior. Não vale a pena, já me estresso demais, essas pessoas não entendem o que eu passo.
- Poxa, de novo! Tô achando que você não tá se esforçando, assim fica difícil né? Vamos de novo.
Agora sorrio meu sorriso mais amarelo, mostrando os dentes nervosamente. Tomara que ela entenda agora meu sinal de que isso está me irritando. Não bastasse o trânsito, a chuva, o chefe... É tão difícil assim entender o meu lado? Tô fazendo de boa vontade algo que ninguém quis fazer, pra que ficar exigindo mais?
- Aiai...Quer deixar quieto? Não precisa fazer se não quiser, a gente tenta dar outro jeito...
Tomo isso como ofensa pessoal. E como um desafio.
- Mas não precisa, sério... Você pode ficar tranquilo, eu me viro depois
Não, não e não. Isso é a mesma coisa que esfregar minha inaptidão na minha cara. Eu posso fazer isso sem problemas, não tá vendo no meu sorriso largo e confiante?
Eu podia ter dito isso, mas novamente deixo estar. Recuso elegantemente a porta dos fundos mostrada, faço um gesto magnânimo de deixa comigo e volto à tarefa requisitada. Contenho um riso matreiro pelo fato dela me subestimar. Todos fazem isso, mas eu sou mais. Claro que não mostro isso o tempo todo, não há a menor necessidade disso, logo todos acham que opero nivelado para baixo. Não podem estar mais enganados.
- Hmm agora parece que está indo bem... Isso, continua, vai... Putz! Bom, essa foi quase lá. Vai tentar de novo?
Claro que vou. As pessoas não estão acostumadas a ver gente que tem potencial pra fazer mais e mais vezes, assim como eu, então acham que poucos fracassos vão deter qualquer um. Idiotas. O suor em meu rosto mostra como a persistência toma forma. Levanto, respiro, dou uma risada irônica e espero que ela pesque a dica.
- Olha só como você está, acho que vou deixar de me aproveitar de você.
Mas ela não pesca, óbvio.
- Tanto suor e cansaço assim, vai acabar passando mal. E não precisa de tudo isso, eu me arrumo depois...
Agora lhe mostro um olhar duro, mas determinado. Eu vou fazer de novo sim, quer você queira ou não. Quem sabe quando parar sou eu, não se atreva a discordar.
- Tá tudo bem? Sei lá, por um momento pareceu que você estava passando mal.
Deuses..
- Ahn, de novo? Mesmo? Olha, não precisa...
Interrompo com um gesto de basta, e volto à minha posição de labuta. O suor desce mais forte por meu rosto, mas isso só vai fazer minha vitória mais doce. E quero ouvir as desculpas por me subestimar saindo de sua boca, o arrependimento ao qual serei superior e dispensarei com elegância e garbo. Mal posso esperar, tudo ao alcance de minhas mãos. Heh.
- Agora vai hein, só mais um pouco...
Calada, não tá vendo meu esforço aqui?
- Mais um pouquinho...
Ô cacete... Será que se eu esmagar a garganta dela ela fica quieta?
- Isso, isso, vai, vai!
Chega porra, fica quieta! Quando isso terminar eu vou bater nela. Bem forte, no meio da cara dela. Tá mais do que merecendo, não tem a mínima noção, não é possível. Não basta tudo o que eu passo, tenho que aguentar a cidadã berrando na minha orelha. Um tapa, direto, na cara. Só isso.
- Isso, finalmente! Puxa, não é que você conseguiu mesmo? Pensei que você não ia trocar esse pneu nunca!
Largo a chave de roda no chão. Lugar errado. Tinha que ter enfiado na cabeça dela.
- Tava quase chamando o guincho, tava tão difícil pra você! Bem, agora tá trocado, não estraguei minhas unhas e tá tudo certo! Obrigado viu! Agora deixa eu ir que eu tô atrasadérrima!
Pensei em gritar pra ela esperar, fazer ela ouvir poucas e boas e agradecer meu esforço de forma mais justa. Mas deixa pra lá, já me estresso com tanta coisa... deixa estar. Podia ter me dado seu telefone, pelo menos, até que era bonitinha, mas só isso também viu...



L'acqua

E nunca mais houve um sorriso tão enigmático
Sumiu junto com as pegadas deixadas na areia
Foi-se com as nuvens de um dia antigo
Ainda lembro, ainda sei que isso aconteceu
Mas não como uma certeza factual
Parece mais algo visto através de prismas distorcidos
A cada olhada se torna menos concreto
E dependente totalmente de como a luz incide
Há vezes mais sombrias
Há vezes mais bonitas
Há vezes, apenas
Estive lá, numa memória etérea
Na dança de minutos e segundos
Cada passo desses gravados intangivelmente
Mas que volta em ciclos
E eu admito, há vezes que não acredito
É tão fugaz, fácil de sumir
Bem mais fácil que desaparecer
Mas que uma música, uma palavra traz de volta
Vai na frente, eu ainda tenho coisas pra fazer aqui
E de resto
É assustador, não sei bem o que estou fazendo ou aonde estou indo
Sei que tenho que lembrar
Por isso, hoje, sentei numa pedra e lembrei.