sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Se recolheu e...

...foi dormir. O dia tinha sido longo e cansativo, mais uma batalha travada na guerra chamada vida. Trocou de roupa com velocidade comparável ao crescimento de uma estalagmite. Ao deitar, até tentou pousar de forma suave no colchão, mas no meio do trajeto desistiu e desabou torto em cima dos lençóis. Ficou uns instantes com a cara enfiada no travesseiro, não conseguindo se mexer. Parecia que todos os seus músculos haviam se rendido, e agora não estavam nem aí se o resto não pudesse funcionar direito. Imaginou até um debate fictício, onde seu peitoral ganhava intelectualmente de forma arrasadora de seu pulmão, convencendo a platéia formada por vários órgãos internos [que estavam torcendo pelo pulmão, e agora muitos choravam ou juravam vingança] e externos [que só estavam ali pela bagunça mesmo] que respirar era algo completamente desnecessário e que não valia a pena gastar energia nisso. Perdera se em pensamentos, e agora estava ficando com falta de ar. Virou-se num espasmo, agarrou a coisa mais parecida com uma coberta e desistiu.
Quando já conseguia visualizar o reino encantado que visitava quando sonhava [onde além de grande cavaleiro, ele tinha um harém formado apenas por mulheres que já o tinham rejeitado] Algo o acordou. Sentindo grandes puxões e repuxões em sua barba, abriu os olhos e viu seu cachorro, Algo, arfando a 5cm de sua cara. Havia esquecido de colocar comida para o pobre cão, que passava dias e mais dias sozinho. Resignado, conseguiu se levantar com a graciosidade de um desastre ferroviário e foi até a cozinha pegar algo para Algo. Despejou mais ração do que devia, bocejou escandalosamente e começou a rastejar em direção ao quarto novamente. Despencou das alturas mais uma vez e fechou seus olhos.
Uma das garotas do harém abriu a boca para falar algo, mas o que saiu de sua garganta era The Spirit of Radio, do Rush. Estranhou, mas sem problemas, e daí, pelo menos a música é boa. Beijou-a ouvindo os acordes da canção, e quando se separou dela a canção recomeçou. Continuou estranhando, mas nada que fizesse ele se sentir menos atraído por ela. Olhou em volta e viu que todas as garotas estavam emitindo o mesmo som. Olhou para a primeira garota e agora ela estava com a cara do vocalista do Rush. Todas as garotas estavam com a mesma face [embora ele jurasse ter visto Neil Young num amor platônico do colegial] e o terror começava a tomar conta dele. Acordou num susto gigante quando uma das garotas tirou o sutiã e revelou um peito cabeludo. Após perceber que estava dormindo e acordara, reparou que música vinha do mundo real. Agarrou seu celular e colocou-o no ouvido:
- Alô – sua voz saía das profundezas abissais do oceano.
- E aê sua franga lazarenta?
- Hm? Quem é?
- Sou eu cacete, ta lembrado de mim não?
- Não, sinto. Deve ser engano.
- O caralho, sou o Daniel, porra.
- Não conheço Daniel algum, é engano.
- Porra Luiz, Daniel da Lourdes!
- Meu nome não é Luiz. Olha, tente em outro número, esse não é nem nunca foi de um Luiz.
- Como assim não é você rapaz, ta ficando louco? Ta achando que eu vou acreditar em uma dessa? Então, eu queria te perguntar uma coisa...
- Por favor – mantinha a placidez de um lago congelado, mas com a convicção de um pingüim tentando voar – Meu nome é Rafael, não conheço Luiz algum muito menos você. Deve ter sido um engano, ou você discou o número errado e na real nem me importo. Agora vou desligar.
- Peraí Luiz, só deixa eu te perguntar uma coisa, rapidão!
- Meu nome não é Luiz...
- Só me responde cacete! Ouve só...
- Hm?
- Ta dormindo? – Ouviu gargalhadas estridentes do outro lado da linha, e um clic.
Estava com tanto sono que nem se perturbou. “Amanhã”, pensou, “amanhã eu resolvo isso, seja lá o que for”.
Jogou o celular num canto, aconchegou-se no travesseiro e nas cobertas novamente e fechou os olhos determinado a não deixar que nada menos que uma catástrofe aérea o acordasse.
Ainda não havia dormido quando reparou em um som agudo e penetrante aumentando. Afundou mais no travesseiro, mas ainda assim o barulho estava aumentando. Quando já estava a um passo de tornar-se da mesma matéria que o travesseiro de tanto se afundar, levantou-se sonolento e olhou nos arredores. O som vinha de todo lugar, como se fosse próprio do ambiente. Com sua mente funcionando devagar, notou as coisas na seguinte ordem: o som começava a se concentrar em uma direção só, próxima a janela de seu quarto. Algo passou correndo entre seus pés escondeu-se debaixo da cama. Uma luz mais forte entrou pela janela, acompanhada de um barulho terrível que parecia o de uma explosão.
Aliás, a luz também parecia ter sido de uma explosão. Já tinha visto uma explosão antes? Não? Então como ele podia supor ser de uma explosão? Enfim, resolveu ir até a janela.
Uma fumaça negra iluminada por chamas subia de umas três quadras a frente. Alguma correria na sua rua, gente sangrando, mas e daí? Estava feliz por morar no 5º andar, tinha uma boa visão das chamas subindo. Som agudo, explosão [não comprovada, mas suposta], fumaça, fogo, gente sangrando... Ele sentia que estava deixando algo escapar, todos aqueles fatos não podiam ser coincidência.
Quando finalmente percebeu, ficou desesperado. O que fazer agora? Procurar abrigo? Fugir das chamas? Ir ajudar?
Berrava histericamente com Algo, impressionado demais para dizer algo com algum sentido. Resolveu ligar para os bombeiros:
- Emergência, diga a sua que nós dizemos o que fazer.
- Acho que um avião caiu perto daqui.
- Queda de avião, né? O senhor sabia que apesar disso voar é o meio mais seguro de viajar? Morrem muito menos pessoas por ano em desastres aéreos que nas estradas.
- Hmmm... Ok. Mas acho legal enviar socorro aqui.
- Isso está sendo providenciado, senhor. Enquanto isso me responda: você estava dentro ou fora do avião?
- O que? Se eu estivesse dentro eu estaria morto certo?
- Talvez, mas isso dependeria mais do lugar onde o senhor se sentasse e a forma da queda. O nariz do avião geralmente é o lugar mais seguro, com as maiores taxas de sobrevivência em acidentes desse tipo.
- Olha, não me leva a mal, esse tipo de informação é realmente muito útil, mas aconteceu um desastre aqui.
- Eu sei, eu sei, mas não queremos que isso se repita, certo? Então preste atenção na escala de viagens do piloto, pois ele pode estar sobrecarregado pela companhia e acabar causando um acidente.
- E as ambulâncias, quando vem? E os bombeiros?
- Assim que o senhor me disser o endereço. Aliás, procure não morar ou ficar durante longos períodos nas proximidades de aeroportos, pois na decolagem e nas aterrissagens ocorrem quase 75% dos acidentes.
Falou o endereço, recebeu mais algumas dicas sobre como não se envolver em acidentes aéreos [para ele, inclusive, faltou “não ligue para os serviços de socorro”] e desligou.
“Agora sim”, pensou de consciência aliviada. Podia ir dormir sossegado, já tinha chamado socorro e não havia muita coisa ele pudesse [ou quisesse] fazer. Nem ficou com curiosidade de ir lá, agora só queria dormir.
Deitou-se novamente, depois de afagar Algo, e relaxou.
Ouviu uma porta batendo no vizinho, uma gritaria sem sentido e pessoas começando a chorar. Som de passos descendo o corredor na direção de seu apartamento, um toque em sua campainha. Amaldiçoando aquela madrugada, foi até a porta e abriu-a forçosamente.
- Alô vizinho! – disse seu vizinho, um aposentado já grisalho que mantinha seu sorriso confiante e levemente irônico de sua época de vendedor – Parece que temos um grande acontecimento lá fora hein?
Pensou em diversas maneiras de responder, mas estava tão extenuado que o máximo que conseguiu foi um “uhmm”.
- Pois é, pois é! Quem diria que isso aconteceria agora, praticamente em nossa porta! Esse mundo está muito estranho. Lembro de uma vez em 77...
Sua mente partiu dali e foi para o reino onde ele era um grande cavaleiro. Mas o vizinho percebeu e terminou sua história com um “não acha?” que o trouxe de volta, mas não foi capaz de fazê-lo articular algo melhor que “uhmm”.
- Então, além de vir ver se você está bem, vim pra avisar que os bombeiros pediram para evacuarmos o prédio. Segundo eles a estrutura pode ter sido muito abalada e esse prédio pode cair a qualquer momento. Acho que era só isso. Boa noite, e nos vemos lá fora!
Não podia acreditar. Ele não ia sair daquele prédio. Todo mundo podia ir, ele ia ficar. Se quisessem podiam levar até os tijolos, que deixassem só a cama. O sono o dominava por completo, nada mais importava senão descansar. Tudo conspirava para atrapalhar seu sono, o mundo era muito injusto, a vida era uma merda e ele precisava dormir.
Deitou-se e ouviu os passos dos vizinhos deixando o prédio, a gritaria nas ruas, as sirenes ao longe... Sua cabeça rodava numa espiral em direção à inconsciência, o grande e merecido descanso se avultava entre as colinas do grande reino. Ficou se revirando na cama por quase 2 horas.
Já de manhã, com o corpo maltratado pela noite mal dormida, levantou-se e trocou de roupa, depois de um banho para tentar acordar. Desceu à rua e surpreendeu os policiais que montavam guarda para que ninguém subisse. Eles até tentaram perguntar de onde ele tinha vindo, mas invariavelmente a resposta era “uhmm”. Desceu a rua, tentou entrar na padaria [que estava fechada] em que tomava café todos os dias. Após várias tentativas frustradas chutou a porta e desceu 3 quadras em direção a seu trabalho.
A rua estava bloqueada, com uma enorme cauda de avião surgindo em meio aos escombros.

sábado, 13 de agosto de 2011

Delirium vol.1


Agora não sei se vou ou fico
Tive meu momento de dúvida
E ele não passou quando eu quis
Agora penso tanto e nada faço
Perdi minha decisão em outra calça

Só mantendo minha vida
Apenas indo, não mais tentando
Quis falar, mas nada me ocorreu
Pensei, pensei e me embriaguei
De álcool e sangue, mas não de virtude
 
Onde estava meu orgulho
Por onde andava minha dignidade
E o tabuleiro onde montei minha vida
Meu seguro saúde, meu CPF
Meu ar blasé sumiu junto com minha indiferença

Cansei de fingir, cansei de sorrir
Cansei de chamar e ninguém olhar
Cansei de pegar a pena e não escrever
Cansei de tentar e não conseguir
Bati, bati e não responderam

Hoje não quero mais fingir
Quero mais, quero ser eu mesmo
Chorar se quiser, gritar se puder
Falar mesmo com as pedras
Pular uma vez se me deixar feliz

Compor músicas vis
Poemas vagabundos, dignos de uma meretriz
Não pensar no que houve
Não lembrar do hoje
E ser feliz como nunca mais

Sorri e segui
Chorei e consegui
Amei e desisti
Por um tempo me permiti
Ser não uma imitação, mas o original

Depois de tudo isso, só me falta ser feliz.

Inner Strenght


Cheguei à beira do penhasco. “Aqui estou”, pensei, “que soem os trovões e que venha a tempestade, pois seu filho a aguarda”.
Sentei-me com as pernas no abismo, contemplando o horizonte infinito encoberto por nuvens negras. Esperei por um sinal de que minha vinda não tinha sido em vão, de todo o caminho, todos os obstáculos e todas as dificuldades superadas, mas ele não veio. Apenas o vento compareceu, balançando meu corpo perigosamente para uma queda fatal, mas não tive medo. Uivava em meus ouvidos como o som do próprio inferno, gelava meus ossos, golpeava minha cara com um milhão de gotas violentamente atiradas contra mim. E ainda assim, não tive medo ou quaisquer emoções do tipo. Estava inspirando profundamente, ouvindo o som das ondas se quebrando selvagemente muitos vertiginosos metros abaixo. Nunca antes me sentira tão uno com o todo. Eu era a tempestade. A tempestade era eu. Trovões rebentavam com minha fúria derramada sobre eles, guiando-os e destruindo tudo o que tocavam.

Ouvi uma voz me chamando. Um tom doce insinuava-se e me seduzia, me oferecendo a paz que nunca tive. Um alívio para meus tormentos e um consolo para minhas lágrimas, um repouso e um descanso não menos que merecido.

Pensei por um instante. “Porque não”, pensei entre lágrimas, “Porque não terminar tudo por aqui?”.

Mas o momento passou. Olhei para a tempestade, encarei-me nas nuvens que ainda despejavam minha fúria, senti seu cheiro levemente elétrico e fui abraçado por suas águas das alturas. Olhei para as ondas, com suas vozes suaves e cheias de promessas, cerrei meus punhos e gritei a plenos pulmões meu nome. As ondas responderam com maldições e ameaças rugidas, não suportando serem rejeitadas. Mas me mantive firme. Agora nada mais poderia me deter. Eu era a tempestade, e tempestades não podem ser evitadas ou rendidas. Elas não se dobram, não são manipuláveis e não recebem ordens. Não vivem em vergonha, não desistem e são ferozes com quem as confronta. E assim, com um grito poderoso que dizia ao mundo “Não me derrotarás!” declarei-me livre de toda a derrota.