quinta-feira, 30 de julho de 2020

Sonolência

Um sonho apenas. Acordava ofegante e suado, os lençóis bagunçados mas tudo era apenas um sonho.
Foi ao banheiro e se olhou no espelho. Esperava reconhecer o herói das aventuras, o centro da história. Encontrou uma face cada vez mais enrugada, marcada pela passagem do tempo.
Voltou ao quarto, trocou de roupa [ainda sem encontrar vestígios de sua armadura brilhante ou da camisa que brilhava ao invocar seus poderes], foi a cozinha preparar seu café da manhã. Abriu a geladeira quase vazia, pegou a margarina quase vazia e passou num pão quase sem recheio. O café não tinha o mesmo cheiro do sonho, a comida não satisfazia seus sentidos. Não havia um leve ar de especiarias, uma atmosfera mais quente.
Suspirou fundo. Ligou a TV para ver as notícias, nada sobre as peripécias de um jovem de 20 e poucos anos sendo destaque num esporte que nunca havia praticado, nada sobre reencontrar um flerte há muito não visto mas que deixou a marca do não concretizado.
Apenas novidades de um cinza apático, de um mundo que não para de girar.
Levantou, jogou a louça na pia e se preparava para sair. Não iria voando, não teria um carro superesportivo esperando. Uma caminhada até o ponto do ônibus, que não iria se acidentar e prenderia em suas ferragens nada menos que seu verdadeiro amor, o qual apenas ele conseguiria salvar num ato de heroísmo. Não haveria cerimônia numa praia paradisíaca, não dessa vez.
Um dia nublado, uma chuva fina e incerta. Frio, muito frio. Não havia neve, não teria esqui ou resgate nas montanhas. Não faria uma descoberta peculiar andando na rua, não encontraria seus amigos e iria se aquecer na companhia deles.
Nada aconteceria. Mais um dia, menos um dia. Nenhum bilhete premiado no caminho, nada de encontrar um parentesco com uma celebridade, nada de se destacar como um talento tardio.
Nada de revolucionar o mundo.
Sentou-se à mesa do trabalho, deu um novo suspiro profundo e ligou o computador. Olhou para o relógio na parede e perguntou-se quando podeira sonhar novamente.

domingo, 17 de novembro de 2019

Demolição

Qual a ideia a expressar
Tenho feito silêncios e introspecções
Revirei pedras e arcabouços
Mas não era necessário 
Tudo o que foi preciso foi me ver
Foi estar onde não devia

Sempre penso no que sinto realmente 
Qual o motivo dessas lembranças doerem tanto
Como fiz de mim algo com medo da própria mente
Sem coragem de olhar atrás das portas
Fingindo uma indiferença que não tenho
Esperando algum salvador falar ou pensar por mim

Sem, no entanto, deixar me guiar
Confiar cegamente no destino
Ou em deus, se existir algum 
Se alguém acaso se importe, também 
Hoje o cinismo é tamanho que até minha falta de fé parece desacreditar de mim.
Eu respiro pesado, sentindo os dados sendo rolados

Vejo o fracasso continuo de tudo
A entropia universal vindo em velocidade máxima 
Dói a cada derrota
Dói a cada momento 
O relógio escancara minhas falhas
Por um tempo me acalmo

O remédio não faz mais efeito
A vida não faz mais efeito 
Onde me enganei?
Trilhei caminhos que nem sempre estavam abertos 
Pela pura teimosia
(São novamente quatro horas?)

O que restou de mim?
Quem é você?
O que faz de mim eu mesmo?
Por que estou novamente oco?
Que desgosto é esse?

Busquei conforto em meu sofá 
Enterrei minha cabeça nas almofadas.
Fiquei novamente em silêncio 
E o cinismo está palpável. 
Acaba mais uma vez
E nada fiz.

terça-feira, 18 de setembro de 2018

Capítulo 1 - Garoto problema.

Rafael era um garoto problema. Sentado na janela da sala, observando a cidade vazia e cinza naquele dia chuvoso, cidade desconhecida. Estava triste com tudo o que acontecera, mas nada era pior que essa sensação de desconhecimento, de não estar em casa, de solidão.
Havia se mudado há pouco tempo e tudo havia mudado na sua vida. Antes era feliz, tinha uma turma grande de amigos, era o rei de sua escola. Falava com todos, era conhecido por todos. Gostava de pensar que seria assim pra sempre.
Ouviu o carro de seu pai parando, os sapatos chapinhando na água, a porta de casa abrindo, mas não se moveu. Seu irmão mais novo passou por ele e o cumprimentou efusivamente e tentou abraçá-lo, mas Rafael esquivou. Sem acusar o golpe, ele tentou contar empolgadamente algo que havia acontecido na escola ou alguém que tinha conhecido, mas não foi ouvido. Finalmente ele se afastou, um tanto contrariado por ser ignorado. Rafael sabia que o magoara, mas não se importava. Ali estava apenas cinza, como o céu lá fora.
- Passei na sua escola e me disseram que você não foi - disse seu pai, tirando o casaco molhado e chacoalhando o guarda chuva em cima do carpete - Droga!
- Eu não fui mesmo - disse Rafael, sem virar o olhar.
- Bem, você sabe que isso não está certo. Você não vai me dizer qual o motivo pra eu te deixar na porta da escola e ainda assim você não assistir a aula?
- Eu não quis. Essa escola é ruim e os meninos lá são piores.
- Isso não é motivo pra faltar, sinto te informar. Você vai ter que frequentar, é uma escola ótima com boas referências.
- Não melhora em nada pra mim.
- Mas não tem que melhorar, ok? Agora o que você tem que fazer é ir lá e fazer alguns amigos - seu pai deu um toque no seu ombro, e Rafael olhou raivosamente para ele.
- Fazer amigos nessa droga de lugar não vai acontecer mesmo.
- Olha, eu sou paciente, mas hoje você que não me teste - a irritação era flagrante.
- Não vou te testar, mas eu não vou praquele lugar e se estiver achando ruim me mande pra minha avó.
- Rapaz, você acaba de cometer um grave erro - seu pai agora o apertava forte no braço - Você vai para lá sim e se eu ficar sabendo que você não entrou vai direto para o castigo!
Sem levantar o tom de voz, Rafael olhou nos olhos de seu pai:
- Eu já estou de castigo, lembra? Semana passada, por responder o professor. Arrume outra coisa pra me machucar.
Seu pai soltou o braço, e aproveitando o momento Rafael correu para seu quarto.
Trancou a porta, deitou na cama e afundou a cara no travesseiro. Se nada tivesse acontecido, se sua mãe não tivesse morrido, se seu pai não tivesse mudado de cidade e levado os filhos, se ele simplesmente tivesse ficado com seu avós, não seria tão difícil.
Agora ele era apenas um garoto problema, mas na realidade ele estava triste, tão imerso em si que nada mais importava.
O céu continuava cinza, a cidade era triste e as pessoas eram estranhas.
Apenas um garoto problema.

quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Uma inadequada história - parte 2

Mensagem encontrada em um envelope lacrado com cera, numa gaveta de uma escrivaninha em um quarto de hotel que no registro hospedou o Dr. Hanzinza Schucrutidão

Caros leitores, como vão? Há tempos tento enviar essa atualização sobre meu cativeiro, porém, como narrei anteriormente, tive muitas dificuldades com a falta de hospitalidade de meus captores. Pois vejam, senão consegui até agora comover-lhes, a última injúria: fui hospedado numa suíte com um capanga à porta, para que eu não fugisse. Tenho uma hidromassagem, uma TV que posso ver e recebo refeições fartas, mas quando verifiquei o folheto do hotel não pude deixar de notar que era 4 estrelas. Novamente, dificultam minha vida, mas devo bravamente resistir, pois minhas descobertas nesse período foram extraordinárias!
Continuando meu relato de onde havia parado em meu diário, cumpri minha rotina de interrogatórios e interações animadas unilaterais que acabavam me rendendo algumas agressões alegremente por alguns meses, pelo que pude calcular. O chef nunca acertou o ponto do pato, mas provei uma raclette que certamente me renderá muitos sonhos no futuro. Mas divago. Pois bem, sempre me perguntavam pelo apocalipse das borboletas e sobre como havia descoberto tanto, subestimando claramente minha habilidade de pesquisador altamente experiente e capaz. E continuaram sem saber, pois a cada interrogatório eu prezava por manter meu papel de cativo, com gritos e esperneios que deixariam qualquer ator dramático com inveja. Após esse período, resolveram me deixar mais à vontade e pude andar livremente pela masmorra onde me confinaram. Tive então, acesso à outras salas e a algumas pessoas que estudavam areas similares às minhas, ainda que de forma rasa, e descobri, que a modéstia me perdoe, que apenas eu era um cativo. Claro, você leitor sabe o que isso significa: minha importância como estudioso do fenômeno me fazia muito mais relevante que os pobres incautos que não conseguiam sequer chegar perto de minhas descobertas. E que meu papel como sequestrado certamente era melhor desempenhado.
Quando alguém me abordava eu usava a mesma estratégia de gritar e espernear pedindo minha liberdade, e com o tempo fui sendo deixado em paz. E claro, descobri muito mais. Vi um porão onde haviam dezenas de espécies de borboletas em estufas, numa visão majestosa e em estrutura magnífica, mas que não entendi a serventia. Havia uma placa escrito "Viveiro de espécimes para utilização durante o Holocausto das Asas Leves", que achei curiosa, e uma porta de aço com a bandeira Sueca e uma sigla, a qual não me recordo agora.
Engraçado, nunca havia me ocorrido de esquecer algo. Deve ser essa banheira com sais baratos. Maldito momento onde nem uma jacuzzi foi sequer considerada para meu bem estar. Esses amadores ainda terão o deles, ah se terão! Mas divago novamente.
Um belo dia me buscaram em minha cela (que a essa altura já contava com um colchão razoável e travesseiros de pena), me cobriram o rosto com uma sacola e após um percurso labiríntico, me defenestraram, no sentido estrito do termo. Fui arremessado por uma janela e caí na neve escandinava, sem sinal de meus captores. O estabelecimento através do qual havia sido tão rudemente atravessado era, nada mais que o Lundgren's. Ele estava fechado, exceção feita ao estilhaçamento vítreo que induzi.
Fiquei confuso por um momento; logo fiquei plenamente ofendido. Decidi gritar o que havia passado a plenos pulmões no meio da aldeia onde estava o abuso a que havia sido submetido, e tenha certeza caro leitor que não poupei palavras! Como podiam se desfazer de um ícone da sabedoria como eu?
Tomei então, uma pancada na nuca que me desacordou. Ao recobrar-me, dei por mim nessa suíte. Ninguém veio falar comigo, e tendo disponibilidade de caneta e papel (algo maravilhoso, visto que em um acidente relacionado ao local em que guardava e que ainda reluto em comentar, perdi meu lápis companheiro) resolvi por minhas desventuras em dia. 
Sei que minhas descobertas estagnaram, porém acredito que preciso descobrir o que ha atrás da porta de aço. Algo me dá a certeza que a solução para tudo está lá, e digo isso a despeito de uma marcação na própria, dizendo "SECRETO".
A sigla me parece mais clara agora. Será que era LNBS? Mantenho a ver.
Assim como espero que achem meu diário, deixo esse envelope aqui. Continue me acompanhando!

Dr. Hans Schucrutz



Ondas

E aqui novamente estou olhando para mar. Você sabe por que venho aqui todo dia? Porque eu me lembro dela.
Eu era muito jovem. Eu tinha muito medo. Embora pouco tivesse vivido, já tinha sido rejeitado por vezes demais. Meu coração já estava partido e amedrontado além da conta. E no entanto, lá estava ela. Resplandecente, iluminada. E eu, um buraco negro. Demorou ate ter coragem de sequer falar com ela. Demorou mais ainda para conseguir articular uma conversa. Eu estava lutando com meus próprios demônios, com minha inabilidade de encaixar. Ela, tímida de início, tornou-se popular e sorridente, desabrochando na maravilhosa flor que é.
Com muito custo, consegui me aproximar mais, com desajeitados esforços para chamar a atenção. Tudo o que eu fazia, nessa altura, era para que eu conseguisse ser botado em meio a tanta gente. Tornei-me seu amigo, e cada segundo de conversa e companhia era sagrado e dourado. Me contentava com isso, tinha amostra do que seria ter relevância naquele universo tão distante do meu dia a dia sofrido e solitário.
Mas não era só eu que estava na idade de apaixonar; logo ela começou a ter encontros com outras pessoas, e cada vez menor fui ficando. Arrumei uma garota que disse que gostava de mim, e no meu desespero para me livrar de mais sentimentos tortos (como poderia ter ciúmes de alguém que nunca me iludiu, que nunca se interessou por mim?) mas a dor era tão enorme que quase desgracei uma vida além da minha.
Nesse ponto, já havíamos há muito nos separado nas voltas que a vida dá. Vi inúmeras viagens que ela havia feito, principalmente para o mar, e muitas vezes apenas para ele.
Dei um jeito na maioria de minhas dúvidas, ganhei algo de confiança e vivi a minha vida com um furo gigante no peito, mas vivendo.
E um dia, ela apareceu. Conversamos pouco, só o suficiente para que eu tivesse o mesmo sentimento aflorando e me atormentando. Continuava a mesma flor maravilhosa e iluminada que eu havia conhecido.
Combinamos de nos encontrar ou de conversar mais, não me lembro.
Mas claro, não havia mais tempo.
Por isso, hoje venho aqui olhar o oceano. Inconstante, mas sempre presente na minha vida. A tristeza de estar perto mas não ter o afeto. Ver se espalhando para todos os outros enquanto amo em silêncio.
A culpa e só minha, a dor também.
Por isso, meu amigo de nariz de bronze, voltarei amanhã para ver o mar e contar essa história para você.
Até.


sexta-feira, 31 de agosto de 2018

E se...?

E se
Por um acaso voce dissesse sim
Não sei o que faria
Que seria de mim
Perdido em pensamento
Processando a informação
Não sou acostumado a ter êxito
Não tenho talento para campeão

E se
Eu conseguisse ser feliz
Meu bem, contigo teria sido
Dias alegres e sorrisos
Pois me faria um bem querido
O que me falta de coragem
O que me faltou de coragem
O que não sumiu foi o amor

E se
Ao invés de ver todos os outros
Voce tivesse me visto aqui
Te amando em silêncio oculto
Me enganando para sofrer só um pouco
Sim, meu drama ainda é o mesmo
Fica meu fracasso em si
Pois a história tá aberta e eu não sei
Fechar

E se
Quando eu te olhei
Eu tivesse me apaixonado menos
Para que não esquecesse depois de um tempo
E para poder viver mais sereno
Não ter medo de te ver mais
E conseguir até, quem sabe
Um pouquinho de paz

E se.
E se nada tivesse acontecido
Seria eu ainda isso
Ou seria seu querido?

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Quase drama ao vento

A cena acabou se desenrolando as 4 da tarde, mais ou menos. Era julho, que deveria ser frio, mas naquele dia o Sol havia brilhado forte e estava naquele mormaço da tarde, enquanto as coisas esfriam para anoitecer.
Haviam muitas crianças na rua, num bairro pacato da periferia. Uma pequena atitude desenrola todo o acontecido.
- Ei, não começa a desbicar pro meu lado senao te corto.
- Se não tem coragem não empina pipa, tio. Segura aí que hoje tu perde essa fita aí.
- Mano, sai dessa, to com linha chilena e você vai rodar.
- Vamo ver então, bundão, quem pode mais chora menos. MANDA BUSCA!
Agora não tinha mais volta. Respondendo ao chamado, crianças olhavam atentamente para o ceu buscando as duelistas que fariam o show, prontos para assim que houvesse um vencedor correr atrás dos espólios que cairiam lentamente.
A tensão começava a se construir. O garoto da linha chilena, dono de uma pipa feita de papel de seda amarelo ouro com estrelas verdes e uma rabiola de sacos plásticos variados olhava com apreensão os movimentos do adversário. Não queria um confronto tão próximo de sua rua, pois sabia que os carniceiros iriam atrás dos despojos do derrotado com fúria destrutiva.
O rival, provocou o embate num desafio calculado, ao menos em sua cabeça. Sua pipa era feita de saco de supermercado, humilde, mas podia voar na chuva tranquila. Seu cerol estava grosso, mas tinha certeza que era suficiente para derrubar a adversaria. Queria ver a decepção de todos ao recolher a pipa cortada com a nova manobra que tinha treinado e um segredo na rabiola.
Então, o desenrolar foi o seguinte: as primeiras investidas foram buscando uma à outra no céu, aproximando e afastando antes do enrosco propriamente dito. Na primeira vez que as linhas se cruzaram não se cortaram, mas o puxão foi fortíssimo, quase machucando as mãos calejadas que faziam os movimentos frenéticos. Na segunda vez, a linha chilena se rompeu.
As crianças na rua dispararam atrás da pipa que caía solta, enquanto o outro duelista recolheu sua linha o mais rápido possível para tentar passar embaixo da outra. Olhando com um sorrisinho vitorioso para o derrotado, disse:
- Saca só vacilão!
Com um movimento forte, puxou a linha fazendo sua pipa subir e encaixar um pequeno gancho feito de clipe de metal na armação da derrotada.
As crianças que estavam correndo pararam, impressionadas. O agora dono das duas pipas recolhia a linha orgulhoso de ter conseguido a manobra. O derrotado recolhia sua linha menos desapontado consigo mesmo. Havia perdido para o melhor, ao menos.
Tudo havia acabado. Agora era aproveitar o final de tarde até a hora que as mães começariam a chamar seus respectivos, ignorando os acontecimentos do microverso contido em meia dúzia de CEP's.
Até que a linha da pipa vitoriosa estourou.
Por um momento, a maioria estacou, embasbacado demais com o acontecido para reagir. Mas logo a urgência tomou conta e crianças de outras ruas correram para pegar a agora duplicada oportunidade em queda livre.
Depois de recolherem suas linhas, os confrontantes originais se olharam. Houve raiva, frustração e depois calma. Riram do que aconteceu, o Sol se pôs e a vida seguiu.