sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Hollow

As vezes passava o dia sem falar com ninguém. Guardava para si seus pensamentos, o que causava um tumulto em sua cabeça. As palavras não emitidas brigavam entre si, buscando a supremacia e ascensão na enorme fila que se formava para sair.
Fora de sua mente, o mundo passava. E nada ele falava. Não que se tratasse de um tímido, tampouco era uma pessoa sem opinião. Muito pelo contrário, o que ele mais tinha era ideias sobre o mundo ao redor. Sobre a catraca do ônibus. Sobre a música do Badfinger. Sobre a forma de gelo que ninguém nunca enche. Sobre a política externa do Cazaquistão. Mas todas elas eram presas por seus dentes, e por mais que sua língua tentasse expressá-los eles morriam ainda em suas entranhas.
Talvez não fosse o melhor jeito de viver; toda a complexidade humana, ainda que artificial, produzida por reações de elementos químicos e impulsos elétricos que se fazem acreditar por coisas sérias, não foi feita para ser aprisionada. A linguagem provavelmente se desenvolvera por isso: para que os demônios internos de cada pessoa pudessem ser exorcizados de forma simples. A inexpressão nos força a enfrentar o pior dos inimigos em batalha, o eu mais verdadeiro e inatingível. Essa luta desmonta por dentro, revolvendo até a parte mais profunda do que nos faz humanos. Pois sim, o verdadeiro sentido de humanidade só é atingido após nos expressarmos, após purgar a alma de seus demônios e renascer em sentido, ideia e espírito.
Agora, mais ideias se formavam sem sair de dentro dele. Uma das possíveis razões era a falta de platéia. De que vale dizer o que não haverá ninguém para ouvir? Ainda que mais pessoas estivessem em volta, não necessariamente elas estariam ali para ouvir algo. Ainda que estivesse conversando com alguém, nada indica que ele seria ouvido. Diz-se também que a comunicação só termina na mente do receptor, com ele completando o que foi emitido com sua própria bagagem e visões. Então de que vale emitir ideias que permanecerão incompletas? De enviar mensagens trôpegas, ocas e perdidas?
Mas não era essa a razão.
A razão, pura e simplesmente, era porque ele tinha medo. Apenas assim.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

May the road rise...

Ao acordar em um bem passar de dias esquecidos
Agora sim, tudo faz sentido
O caminho aberto na névoa está concluso
Ela levantou-se, lavou-se e olhou-se
Havia algo diferente nesse espelho há alguns segundos
Sem mais remorso, sem mais arrependimento
Sem mais culpa, nem quem culpar
Você por você agora
Assim chega,
De se prender a rochas instáveis
Achar dificuldade em algo que merecia ser simples
Ver a felicidade alheia
De não ter alguém que se importe
Como aquela vez em que contamos uma história
Ou de acreditar na fábula de duas pessoas juntas
Ainda te magoa a injustiça
Permanece
Mas naquele transporte lotado
Na rotina insuportável
Nos dias que se passam
Foram se os momentos de pesar
Ela não se arrepende
Não é exatamente feliz
Mas afinal de contas, o que é?
Relâmpagos não caem duas vezes no mesmo lugar
É hora de voltar pra casa
Chamaram aquela garota e ela, obediente como qualquer anjo,
Foi



sábado, 22 de setembro de 2012

Dia desses

- Ah, mas você pode tentar de novo.
Disse aquilo com uma cara tão inocente que me desanimou de responder. Eu tinha discutido a tarde inteira, não aguentava mais. Resolvi deixar passar.
- Ih olha lá.. você fez errado de novo. Bom tudo bem, vamos tentar outra vez.
A mesma cara inocente, eu novamente tentando manter a paz interior. Não vale a pena, já me estresso demais, essas pessoas não entendem o que eu passo.
- Poxa, de novo! Tô achando que você não tá se esforçando, assim fica difícil né? Vamos de novo.
Agora sorrio meu sorriso mais amarelo, mostrando os dentes nervosamente. Tomara que ela entenda agora meu sinal de que isso está me irritando. Não bastasse o trânsito, a chuva, o chefe... É tão difícil assim entender o meu lado? Tô fazendo de boa vontade algo que ninguém quis fazer, pra que ficar exigindo mais?
- Aiai...Quer deixar quieto? Não precisa fazer se não quiser, a gente tenta dar outro jeito...
Tomo isso como ofensa pessoal. E como um desafio.
- Mas não precisa, sério... Você pode ficar tranquilo, eu me viro depois
Não, não e não. Isso é a mesma coisa que esfregar minha inaptidão na minha cara. Eu posso fazer isso sem problemas, não tá vendo no meu sorriso largo e confiante?
Eu podia ter dito isso, mas novamente deixo estar. Recuso elegantemente a porta dos fundos mostrada, faço um gesto magnânimo de deixa comigo e volto à tarefa requisitada. Contenho um riso matreiro pelo fato dela me subestimar. Todos fazem isso, mas eu sou mais. Claro que não mostro isso o tempo todo, não há a menor necessidade disso, logo todos acham que opero nivelado para baixo. Não podem estar mais enganados.
- Hmm agora parece que está indo bem... Isso, continua, vai... Putz! Bom, essa foi quase lá. Vai tentar de novo?
Claro que vou. As pessoas não estão acostumadas a ver gente que tem potencial pra fazer mais e mais vezes, assim como eu, então acham que poucos fracassos vão deter qualquer um. Idiotas. O suor em meu rosto mostra como a persistência toma forma. Levanto, respiro, dou uma risada irônica e espero que ela pesque a dica.
- Olha só como você está, acho que vou deixar de me aproveitar de você.
Mas ela não pesca, óbvio.
- Tanto suor e cansaço assim, vai acabar passando mal. E não precisa de tudo isso, eu me arrumo depois...
Agora lhe mostro um olhar duro, mas determinado. Eu vou fazer de novo sim, quer você queira ou não. Quem sabe quando parar sou eu, não se atreva a discordar.
- Tá tudo bem? Sei lá, por um momento pareceu que você estava passando mal.
Deuses..
- Ahn, de novo? Mesmo? Olha, não precisa...
Interrompo com um gesto de basta, e volto à minha posição de labuta. O suor desce mais forte por meu rosto, mas isso só vai fazer minha vitória mais doce. E quero ouvir as desculpas por me subestimar saindo de sua boca, o arrependimento ao qual serei superior e dispensarei com elegância e garbo. Mal posso esperar, tudo ao alcance de minhas mãos. Heh.
- Agora vai hein, só mais um pouco...
Calada, não tá vendo meu esforço aqui?
- Mais um pouquinho...
Ô cacete... Será que se eu esmagar a garganta dela ela fica quieta?
- Isso, isso, vai, vai!
Chega porra, fica quieta! Quando isso terminar eu vou bater nela. Bem forte, no meio da cara dela. Tá mais do que merecendo, não tem a mínima noção, não é possível. Não basta tudo o que eu passo, tenho que aguentar a cidadã berrando na minha orelha. Um tapa, direto, na cara. Só isso.
- Isso, finalmente! Puxa, não é que você conseguiu mesmo? Pensei que você não ia trocar esse pneu nunca!
Largo a chave de roda no chão. Lugar errado. Tinha que ter enfiado na cabeça dela.
- Tava quase chamando o guincho, tava tão difícil pra você! Bem, agora tá trocado, não estraguei minhas unhas e tá tudo certo! Obrigado viu! Agora deixa eu ir que eu tô atrasadérrima!
Pensei em gritar pra ela esperar, fazer ela ouvir poucas e boas e agradecer meu esforço de forma mais justa. Mas deixa pra lá, já me estresso com tanta coisa... deixa estar. Podia ter me dado seu telefone, pelo menos, até que era bonitinha, mas só isso também viu...



L'acqua

E nunca mais houve um sorriso tão enigmático
Sumiu junto com as pegadas deixadas na areia
Foi-se com as nuvens de um dia antigo
Ainda lembro, ainda sei que isso aconteceu
Mas não como uma certeza factual
Parece mais algo visto através de prismas distorcidos
A cada olhada se torna menos concreto
E dependente totalmente de como a luz incide
Há vezes mais sombrias
Há vezes mais bonitas
Há vezes, apenas
Estive lá, numa memória etérea
Na dança de minutos e segundos
Cada passo desses gravados intangivelmente
Mas que volta em ciclos
E eu admito, há vezes que não acredito
É tão fugaz, fácil de sumir
Bem mais fácil que desaparecer
Mas que uma música, uma palavra traz de volta
Vai na frente, eu ainda tenho coisas pra fazer aqui
E de resto
É assustador, não sei bem o que estou fazendo ou aonde estou indo
Sei que tenho que lembrar
Por isso, hoje, sentei numa pedra e lembrei.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Há um ano

Há um ano, nada parecia mais simples. Objetivos vêm e vão, os dias passam longamente e quando você vê, os dias se fecharam em uma quantia estabelecida por alguém, transportando as passagens que você estabeleceu para o passado.
Há um ano, suas esperanças eram as mesmas, ainda que em formas diferentes. Sorrindo, você disse que poderia tudo ser diferente, e de certa maneira foi. A ação acontece, a reação desnorteia e as forças se reagrupam para um novo embate.
Há um ano havia um clima diferente no ar. Não definitivamente melhor ou pior, mas os sorrisos pareciam diferentes, suas companhias eram outras e os sons tinham outros significados. Faltava, por mais paradoxal que seja, o excesso de julgamento que também não há hoje, mas que talvez seja o que deixava tudo tão livre de obrigações. Ou assim parecia.
Há um ano, ocorreu algo. Uma fagulha que percorreu seus pensamentos, que transformou seus conceitos e que te trouxe novas certezas para velhas dúvidas. Em um lugar só seu, você ainda guarda seu direito de novamente alterá-las quando novas situações aparecerem e demolirem o que você construiu. Penas e condenações somem ao se encaixar em novos paradigmas. Novas culpas surgiram para equilibrar a balança baseada nas novas condições que te perdoariam em uma gama mais ampla de situações, e novos pesos te esmagam a cada passo em falso. Exatamente como já havia acontecido.
Há um ano, você se entregou à fortuna. Durante algum tempo, não fazia diferença no que acontecia ou iria acontecer. Com um misto de indignação e raiva, de luxúria e ultraje, você julgou certo extrair apenas o que lhe fazia feliz, ainda que momentaneamente. Não durou muito, é verdade, pois não há hedonismo que traga alegrias por grandes períodos. Você achou justo, mesmo sem saber em que essa justiça se baseou, e achou justo também não se sentir mais assim. Mas fechado o ciclo, novamente a fortuna te espreita.
Há um ano, você quis equilíbrio. Um ponto de segurança. Mas o chão se moveu e o levou.
Há um ano você foi feliz. Há um ano você tem tentado ser feliz. Há um ano você é feliz.
Isso, posto agora, parece que foi há muito tempo. Os seus 365 dias e 6 horas que se passaram parecem, escritos, uma longa e exaustiva jornada, cumprida com penar e suor, a custo de algumas partes que se separaram e outras que se juntaram.

Mas na verdade, passado tudo isso, parece um piscar de olhos. Um tempo mais desperdiçado que vivido, algo que deveria ter oferecido mais oportunidades a se viver e momentos marcantes a se recordar, não tão pleno de lembranças fugidias.
E no final/começo desse ano, parece um ciclo. 
Velhos tempos, tão similares e tão diferentes quanto possível dos novos tempos.


segunda-feira, 11 de junho de 2012

O desabafo

- Sabe o que é pior doutor? É essa sensação de vazio, essa falta de objetivo pra nada na vida. Pra que tentar algo, se não der errado vai ser insignificante. Afinal, se eu consigo um emprego, no que isso muda minha condição limitada como ser humano? O que eu agrego para meus iguais? Aliás quem são esses, que nunca estão por aqui? É impressionante como numa cidade com milhões de habitantes você acaba se sentindo mais sozinho. O que você acha, doutor?
- Minha senhora, eu te entendo mas...
- Nem tudo é solitário por aqui? Claro que não. Até tenho vários amigos, saio bastante e vivo rodeada de pessoas boas, mas o que do que me adianta? Ninguém me entende, são pessoas que só vem a mim quando estão se sentindo solitárias e sem programas melhores pra fazer. Assim que suas vidas melhoram um pouco elas fazem questão de me deixar sozinha, à míngua. Enquanto estão tristes sou a companhia ideal, afinal eu sou tristíssima... não é verdade?
- Parece sim, mas a senhora tem que ver que...
- Nem todos são assim? Discordo, não se salva um. Mas não posso tirar a razão deles, ninguém gosta de gente triste. Eu também não gosto, inclusive não há nada que me enerve mais que alguém querendo falar de como sua vida é dura e como tudo dá errado pra si, enquanto eu vivo aqui, nesse estado de miséria e ninguém se compadece. Tenho que ouvir todos e nunca ser ouvida. Me acham a pessoa mais forte do mundo quando sou eu que mais precisa de cuidado. E não tem um pra cuidar de mim, veja só que coisa. Ainda tenho que ouvir, das poucas vezes que me abri assim como estou fazendo com você, doutor, que eu não tenho do que reclamar. Tenho minha casa, carro, um emprego que sempre foi meu sonho, dinheiro, já viajei por aí... mas isso é a insignificãncia, isso não me torna alguém mais feliz. Nada material sustenta a felicidade, né?
- Acho que sim, mas...
- Ajuda? Claro que ajuda, podia ser muito pior, eu sei. Podia viver num barraco, ou ter arrumado um emprego que eu detestasse ou um casamento horrível. Tentaram me casar quando eu era mais nova, acho que é por isso que estou solteira até hoje. Trauma né? Mas o que fazer? Homens são todos iguais, não confio em nenhum desde o meu pai, aquele traste. Bebia que era uma desgraça só, chamava a gente de todo tipo de nome... Minha mãe sabe do que eu tô falando. Mas hoje em dia ela não me entende, acha que eu devia perdoar, como se essas mágoas caducassem assim. Pra melhorar mais, todos riam de mim quando eu era pequena e usava óculos. Pobre, feia e usando óculos, vê se pode! Agora que eu cresci muitos daqueles moleques se arrependeram de ter me rejeitado.
- Sei... Olha, minha senhora, eu preciso te dizer uma coisa...
- Que eu devia esquecer tudo que falaram pra mim quando eu era pequena? Não, não e não. Já ouvi isso e não funciona. Riam de mim, nunca consegui superar... Eu só queria me enturmar, ser legal igual eles eram, mas riram de mim. Sei que isso é algo terrível pra se guardar, mas não consigo deixar pra lá. Já deviam me agradecer por esquecer a idéia de me vingar de todos eles... Isso sem contar que já esqueci mais da metade, mas não o que foi feito. Mas doutor, o que você acha que eu poderia fazer? Era uma criança, e era a piada na rua e em casa! Eu precisava de algo pra rebater. Me escorei no cigarro, na bebida e tive um leve caso com outras coisas, mas ninguém nunca se preocupou comigo. Ah, mas é muito bom estar aqui com você. Precisava tanto desabafar, ser ouvida por alguém... O que você me diz, doutor?
- Olha, quase entendo tudo o que você me disse. Mas acontece que seu terapeuta faltou, minha senhora. Eu sou o jardineiro.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

O erro em si

Como toda história, essa deveria começar com uma frase do tipo "e lá estava ele sem dormir de novo", "pensava na vida despretensiosmente" ou "era uma vez um cara errado que se achava errado, mas não no sentido certo". Mas acho que está na hora de inovar. Usar um pouco de metaliguagem, dar um toque popularesco sem cair no popular [pois como o digníssimo leitor sabe, o popular sempre descamba para a baderna sem sentido] e demonstrar um domínio mais pleno das possibilidades abertas pelo conhecimento da linguagem escrita.
Pois bem, ele estava sem dormir de novo, pensando na vida despretensiosamente e se era um cara errado que se achava errado, mas não no sentido certo. Já tinha comido, bebido, usado o banheiro e até tentado se deitar, mas o sono, esse infeliz que sempre desaparecia na hora em que era mais esperado, não dava sinais que voltaria. Imaginava o dito se despedindo, faltando cinco minutos para o momento mais esperado do dia, dizendo que ia comprar cigarros e já voltava. Quando ele voltava, já com o Sol mostrando sua cara sorridente e despertando os que cedo madrugam, cheirava a álcool e perguntava se ali era Albuquerque. Invariavelmente resultava em curtos períodos adormecidos que não lhe forneciam descanso algum.
Mas calma: o cara errado não era do tipo vagabundo. Ou melhor, não se achava um. Aos amigos, ele dizia só que operava fora do horário comercial e dizia não ver mal algum em varar noite adentro desperto. A alguns ele mostrava até certo orgulho de lutar contra essa natureza diurna da espécie humana, falando que "não importa o que esse negócio de genoma diz, a minha mente supera os limites". Como não é difícil de imaginar, além de errado esse cara era chato pra caramba, do tipo que se você não estiver com a paciência monástica zen em dia, você atravessa a calçada para não ter que cumprimentar.
Enfim, como dito anteriormente, ele pensava na vida. Não procurava a resposta da questão fundamental sobre a vida, o universo e tudo mais, apenas olhava seus caminhos já trilhados e quais ainda restavam possíveis para mais uma corrida em direções diversas. Tinha tido um dia agradável, mas nem todos até ali tinham sido assim. Houveram dias horríveis também, logicamente, mas à exceção de sua memória seletiva e de uma atração pelo desastre não eram predominantes no geral. Eram absurdamente suprimidos pela maioria de dias medianos, tão sem sal que eram impossíveis de serem julgados em valores absolutos como bom ou mal. Eram dias quaisquer, com tão poucos pontos de interesse que se fundiam e viravam um período único de um grande nada.
Até aí, nada demais. O leitor, que a essa altura deve estar se perguntando o que raios uma matutação dessa estirpe contribui com a evolução individual ou da humanidade em si, já matou que o grande problema do cara errado era na verdade nada mais que falta do que fazer crônica, ou como dizia o pessoal das antigas, era falta de uma roça pra carpinar. Isso, fato conhecido que é, causa efeitos diversos sobre pessoas diversas, e no caso em questão era essa obsessão por pensar em caminhos imaginários e planejar passos que não são em si passíveis de planejamento.
Bom, o grande erro do cara errado parece coisa simples, mas como sempre há nesse tipo de história, há um pulo do gato. Algo que se torna um diferencial, mas não tão diferente que não cause uma certa identificação do público com o protagonista, ainda que errado, desse tipo de conto. Geralmente se usa algo que seja puxado para o humor, pois a maioria dos leitores que se dispõe a ler escritos desse naipe prefere uma investida que os deixe com um leve sorriso, bem maroto, de ladinho. Há também a saída de expor o exemplo relatado ao rídículo, para que quem leia sua triste história sobre sua triste figura se sinta engrandecido. Mas, caro leitor: se você chegou até aqui, algo pelo qual esse escriba medíocre o agradece, deve imaginar que a conclusão não poderia ser outra. E de qualquer forma, por que mexer nisso?
O cara errado acabou por dormir no sofá pouco antes do alvorecer. O amanhã reservava novas possibilidades e um ânimo renovado para a vida. Dessa vez tudo ia dar certo, ele só precisava de um pouco de repouso para ser um novo homem. Um cara errado, mas errado do jeito certo agora.
Foi acordado por sua mãe pouco depois do mesmo aos berros, para largar mão de ser vagabundo e ir carpinar uma roça pra ver como é bom.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Delirium vol. 3

Sinto sim, um vento de mudança no ar
Tanta coisa estranha nos acontece por aqui
Quero tanto algo a que me agarrar, buscar equilíbrio
Um frenesi que não me deixa ter sossego
Me arranca a paz tão almejada e querida

Mas a mudança vem para todos nós
O esquisito é só algo mais a se conviver
Meus pés não se apoiam em terra firme, não mais
E os rios sempre me levam para o mar
Grande mar, calmo e furioso
Agitado com minha impaciência

Queria te pegar e trazer até aqui
Poderíamos dançar durante o entardecer, talvez
Ou apenas nos dizer as razões
Para a mudança que nos mostra o futuro
Inexplicável e insondável como o mar

E de amarelo ouro é minha busca
Azul é o grande céu acima de nós
Nos une e nos separa na mesma medida
Verde, o mar me contempla
E me muda para lá
Numa casa de areia soprada

Solto, mudo e sou mudado
Novos olhares sobre velhos artefatos
Outra perspectiva pelo que você sente
E estranho, só o não dito fala
As palavras perdidas no que foi falado

Mudanças mutáveis em terreno instável
E não estou mais aqui
Eu também não estou lá
Você chegou e desistiu
Fui e não gostei do que vi

Inconstante e rígido
Como eu gostaria de ser
Eu fui, você foi
Agora nós partimos
E no fim, o vento de mudança sopra...

Desce!

Deixando de lado tudo isso, restou tão pouco a dizer... 
Fui rendido completamente, fiquei tão sem ação que mal consigo descrever. O controle de meu corpo foi tomado, nem sei como meu coração continuou a bater... me esforcei tanto para conseguir respirar e piscar, essas ações que deixam de ser automáticas em situações assim. Minha mente se perdeu em inúmeras possibilidades de passado, presente e futuro, girando e me confundindo mais do que eu já estava.
Dizem que nesse momento o melhor é confiarmos no nosso instinto, mas o meu entrou em pane. Queria fugir, gritar, pular, investigar, pensar e fazer tudo de novo e de novo. Sentia que estava me entregando: qualquer um que olhasse para mim naquele momento saberia que tudo estava perdido. Não conseguia sequer olhar para os lados para me certificar aonde eu estava, certeza já há muito perdida. Se não sentisse minhas pernas pesadas e duras como chumbo, podia jurar que flutuaria sem rumo.
De repente, um pulsar. Primeiro discreto, mas constante, acrescentando como fundo musical dramático e aumentando meu suspense. Depois aumentando mais e mais, um barulho abafado e desagradável, impossível de se ignorar. Agora minha respiração era mais arfante, suor brotava de minha testa, o desespero era palpável. Estava pronto para explodir, o nó em minha mente se acentuava...
Com toda essa confusão e me sentindo alheio a tudo, resolvi que nada mais restava a fazer. Me agarrei ao som contínuo de tambores surdos em minha cabeça com minhas unhas, trinquei meus dentes e com uma voz surgida de algum lugar que até agora não sei disse:

- Truco!




quinta-feira, 26 de abril de 2012

Delirium vol. 2

Olha como terminamos
Veja aonde nós estamos
Como paramos
E como me esqueci
Esqueci de pensar em você
Esqueci de querer algo mais
Ou de soar como diferença
E de ouvir indiferença
E indiferente estive até agora
Nesse momento em que se está
Na vida que se deve ter
No pensamento triste que domina
Que me domina
Que me revela e clareia
Mesmo tempo em que desnorteia, talvez
Em algo agora tão distante
Que só contornos são trazidos
A água arrebenta na areia
E milhões de grãos permanecem secos
E eu estou aqui
Você nao está aqui
Acho que na verdade nunca esteve
Mas eu quis acreditar que sim
Embora tudo soasse como não
Mas eu quis acreditar que sim
Ainda que na virada da maré
Você não estivesse lá
De baixo para cima, da esquerda para a direita
Em frente e para trás
Não olho mais, não quero mais ver
Não consigo não escutar seus sons
E você nem se lembra do que sou
Uma fagulha de esperança
Uma desistência dita
E a realidade distópica em meus bolsos
Um impulso não realizado
O pulo que não chega
O grito que não se ouve
O silêncio.

terça-feira, 20 de março de 2012

Importância relativa

Estava escuro, e eu andava pela rua principal um pouco sem vontade. Você sabe, a distância desanima qualquer um, e depois de um dia cansativo de trabalho aguentando um chefe chato e clientes insuportáveis não tem um que fique feliz. Nem quis pegar o ônibus de tão lotado que estava, mas esqueci que minha casa fica muito longe do trabalho. Eu acho que brasileiro é assim mesmo, tem mais é que se foder, não sabe escolher político, inclusive tem um primo meu que vai sair candidato e... hein? Ah sim, a história. Desculpe, perco a linha com essas coisas, aqui nessa cidade tá tudo errado. Você sabe né, vive aqui também? Não? Bom, aqui tá tudo zoado, uma bagunça só...
Enfim, tava andando, sem olhar pra cima ou para os lados, cansado e nervoso porque algum idiota num carro preto passou na única poça que tinha na rua e me molhou inteiro, o filho da puta. Mas eu marquei a placa dele, e ele vai ver só, inclusive você é da imprensa né? Publica que eu vou atrás dele e vou processar, tenho um tio no Detran que vai puxar os dados e... hm? Me perdi de novo, é isso? Mas você pode publicar? Ah, me dá uma força vai, tô te dando exclusividade nessa história que vai vender muito, quebra a minha aí irmão... vai pensar? Tá bom. Então, seguia molhado e nervoso quando resolvi olhar pro céu. Não sei o que me deu, sabe quando você simplesmente sente que algo não está certo? Um arrepio assim na base da espinha meio esquisito... A Maria falou que é a idade, mas tem um conhecido meu que é enfermeiro no SUS que disse que pode ser gota. Mas no SUS você não pode confiar né, essa saúde brasileira é um lixo, como eu disse culpa dos políticos que não pensam na população e só nos bolsos deles, meu primo disse que com ele vai ser diferente e... pô cara, assim não vai dar. Você me corta toda hora, não deixa eu falar nada, assim vou chamar outro repórter pra me entrevistar, e o jornal dele vai vender muito e o seu chefe vai demitir você, porque você não quis a exclusiva, deixa eu repetir EX-CLU-SI-VA dessa história que é ouro. Vai se acalmar e deixar eu falar ou não? Sim? Isso garoto. Ô Maria, traz um copo d'água pro garoto que ele tá nervoso. Tem um emprego que é uma beleza, só anda por aí ouvindo a gente, o povo que realmente trabalha duro e fica nervoso assim. Lá na minha fábrica você não ia durar dois dias, o pessoal ia te comer vivo, com esse seu cabelo de franguinho e esse jeito de falar... Vem cá, você é bicha né? Falando desse jeito, com um monte de palavra que não conheço tem que ser. Vai pegar mulher, sua vida vai melhorar. Pronto, tomou a água? Então, estava andando e senti que devia olhar pra cima, a Maria falou que foi Deus que chamou, mas eu acho que eu senti um aviso do universo. O universo fala, eu li um livro uma vez que falava que tem um planeta que vem bater na gente, coisa séria... Enfim, estava eu olhando pra cima quando eu vi. Um rastro de luz vermelha que tinha na ponta um disco laranja e fazendo movimentos impossíveis no céu. Avião não era, que eu nunca vi avião em formato de disco. Bicho não brilha no céu, nem voa tão alto. Não acredito na Maria, que disse que era o capeta me tentando. Vi um monte de filmes na TV sobre ET's e toda essa baboseira que eu também não boto muita fé. Minha avó falava que quando isso acontecia eram os espíritos dos índios que começavam a ir pro outro mundo, onde tudo era mato de se ver e de fumar. Ela era filha de Tupis-Kaoiwás-Guaranis do baixo Tietê, um pessoal que nunca se rendeu aos portugueses e manjava muito do mundo e de como a banda toca no além. Sempre me contava quando eu era pequeno, com seu cachimbo na mão, fumando um troço fedido pra cacete que minha mãe falava que se eu fumasse também eu ia apanhar como nunca tinha apanhado antes. E olha que eu aprontava quando era pequeno hein. Teve uma vez que ela pegou eu e um primo nadando pelado, essas coisas de criança sabe? Tinha um rio perto de casa, a gente era novo, dava uns comichões esquisitos e tal... enfim, ela pegou a gente no ato e me surrou de vara de marmelo até sangrar. Naquela época era diferente, hoje todo mundo é mole, por isso o mundo está como está. Uma roubalheira, filho matando pai e...? Hã? Ah não, a história termina aí. Vi o rastro, voltei pra casa, falei pra minha mulher e fui dormir. Quando acordei, me toquei que era coisa grande, que tinha que falar com a mídia, tinha que mostrar que os índios antigos ainda tão aí, olhando pra baixo e falando que tá tudo fodido por aqui. Ainda bem que deixei a informação valiosa só pra você né? Então, sobre o cara que me molhou, meu primo falou pra aproveitar e falar pra você colocar o nome dele na notícia...