sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Quase drama ao vento

A cena acabou se desenrolando as 4 da tarde, mais ou menos. Era julho, que deveria ser frio, mas naquele dia o Sol havia brilhado forte e estava naquele mormaço da tarde, enquanto as coisas esfriam para anoitecer.
Haviam muitas crianças na rua, num bairro pacato da periferia. Uma pequena atitude desenrola todo o acontecido.
- Ei, não começa a desbicar pro meu lado senao te corto.
- Se não tem coragem não empina pipa, tio. Segura aí que hoje tu perde essa fita aí.
- Mano, sai dessa, to com linha chilena e você vai rodar.
- Vamo ver então, bundão, quem pode mais chora menos. MANDA BUSCA!
Agora não tinha mais volta. Respondendo ao chamado, crianças olhavam atentamente para o ceu buscando as duelistas que fariam o show, prontos para assim que houvesse um vencedor correr atrás dos espólios que cairiam lentamente.
A tensão começava a se construir. O garoto da linha chilena, dono de uma pipa feita de papel de seda amarelo ouro com estrelas verdes e uma rabiola de sacos plásticos variados olhava com apreensão os movimentos do adversário. Não queria um confronto tão próximo de sua rua, pois sabia que os carniceiros iriam atrás dos despojos do derrotado com fúria destrutiva.
O rival, provocou o embate num desafio calculado, ao menos em sua cabeça. Sua pipa era feita de saco de supermercado, humilde, mas podia voar na chuva tranquila. Seu cerol estava grosso, mas tinha certeza que era suficiente para derrubar a adversaria. Queria ver a decepção de todos ao recolher a pipa cortada com a nova manobra que tinha treinado e um segredo na rabiola.
Então, o desenrolar foi o seguinte: as primeiras investidas foram buscando uma à outra no céu, aproximando e afastando antes do enrosco propriamente dito. Na primeira vez que as linhas se cruzaram não se cortaram, mas o puxão foi fortíssimo, quase machucando as mãos calejadas que faziam os movimentos frenéticos. Na segunda vez, a linha chilena se rompeu.
As crianças na rua dispararam atrás da pipa que caía solta, enquanto o outro duelista recolheu sua linha o mais rápido possível para tentar passar embaixo da outra. Olhando com um sorrisinho vitorioso para o derrotado, disse:
- Saca só vacilão!
Com um movimento forte, puxou a linha fazendo sua pipa subir e encaixar um pequeno gancho feito de clipe de metal na armação da derrotada.
As crianças que estavam correndo pararam, impressionadas. O agora dono das duas pipas recolhia a linha orgulhoso de ter conseguido a manobra. O derrotado recolhia sua linha menos desapontado consigo mesmo. Havia perdido para o melhor, ao menos.
Tudo havia acabado. Agora era aproveitar o final de tarde até a hora que as mães começariam a chamar seus respectivos, ignorando os acontecimentos do microverso contido em meia dúzia de CEP's.
Até que a linha da pipa vitoriosa estourou.
Por um momento, a maioria estacou, embasbacado demais com o acontecido para reagir. Mas logo a urgência tomou conta e crianças de outras ruas correram para pegar a agora duplicada oportunidade em queda livre.
Depois de recolherem suas linhas, os confrontantes originais se olharam. Houve raiva, frustração e depois calma. Riram do que aconteceu, o Sol se pôs e a vida seguiu.

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