sábado, 21 de março de 2015

Prólogo - A Chuva de Sangue

Tentava esconder o ferimento na lateral de seu abdômen. Sentia-se zonzo, e cada olhada em sua camisa branca ensopada de sangue lhe causava náuseas. Agora que achara um lugar seguro, foi conferir o estrago. Um talho profundo que ia de sua costela até pouco acima da bacia, limpo como só a mais afiada lâmina poderia fazer. E nada é mais afiado que aquilo que causara o ferimento.
Olhou ao redor, preocupado. Tentou ouvir se alguém se aproximava, farejar alguma ameaça no ar. Sem notar nada, resolveu se curar ali mesmo. Concentrou-se e colocou uma das mãos sobre o corte, que ainda vertia sangue em grandes quantidades.  Fracos lampejos azuis, como pequenos vaga-lumes, começaram a circundá-lo em espirais concêntricas e perfeitas. De olhos fechados, utilizando toda sua vontade para que aquilo que estava fazendo acontecesse e transformando em realidade seu pensamento, fechou o ferimento.
Agora estava completamente esgotado. Usara suas últimas forças para esse pequeno truque e não havia como correr mais. Encostou-se o melhor que pôde detrás de uma lata de lixo nesse pequeno beco em que entrara, tomando cuidado para manter-se o mais escondido possível. A chuva caía forte, lavando o ex-ferimento e diluindo o vermelho. Abraçando seus joelhos, respirou profundamente e chorou fracamente. Ele havia feito seu melhor, mas o adversário era forte demais. A guerra na qual ele era um bravo soldado queria agora tomar sua vida, e apesar de tudo, ele tinha apenas 11 anos. Ainda era muito cedo para o fim.

Um tremor em sua espinha seguido pelo som de um rosnar bestial que vinha de muito perto lhe trouxe de volta. Rapidamente, mas sem deixar de se ocultar, preparou-se para o pior. Cerrou os punhos, murmurou uma prece e ativou seu último recurso. Correram faíscas vermelhas pelos seus punhos, e ele aguardou. O som parecia afastar-se, depois aproximar-se mais, depois cessou.
A chuva constante não abafava seu arfar, ainda que ele se esforçasse para ser silencioso. Tremia de frio e de medo.
Talvez tivesse se livrado, pensou. Talvez o monstro tivesse se cansado da perseguição e ido buscar outra presa. Caçadores são implacáveis, mas não têm tanta predisposição para a busca. Não seria a primeira vez que alguém havia ludibriado algum deles escondendo-se bem.
Ao final desse último pensamento, a parede contra a qual a lata estava apoiada cedeu.
A criatura, que lembrava um cão diabólico, com dentes desproporcionalmente grandes e coberto de sangue e pus rugiu em sua cara, assustando-o. Com reflexos rápidos, o garoto acertou o punho no focinho do ser e moveu-se para a outra parede, se encurralando mas ganhando distância.
- Oras, isso me machucou, quem diria - disse o monstro - Uma pena que não o suficiente, pequeno.
Riu, com a pura intenção de mostrar sua superioridade e malícia.
- É, não pensei que fosse funcionar. Não contra o senhor dos caçadores, que de tão magnânimo prefere caçar algo pequeno como eu. Diga, como é ser tão poderoso e não aguentar nem me matar? - respondeu nervosamente, apenas para ver se conseguia algum tempo para pensar numa saída. Não acreditava que houvesse alguma, mas tinha que tentar.
- E achas que vive pois não tenho força para matar com um único golpe? Você? - e riu descontroladamente novamente - Vives apenas para minha diversão, e para que minha última bocada em seu pescoço tenha o agradável sabor do medo. Não há, em nossa existência, alguém em quem eu não possa cravar meus dentes e reclamar como minha presa. Agora, contudo, entedio-me com o falatório. Obrigado pelo jogo hoje à noite, pequeno.
A criança viu que não tinha escapatória. Lembrou do dia em que fora convocado para a Guerra, o dia em que abriu os olhos para a verdadeira natureza do mundo, A mágica fez de sua vida algo verdadeiro, não o simulacro existente em que todos vivem. O mundo era mágico! Quantas maravilhas eram possíveis, e era tudo tão fácil...
Agora, ao chegar o momento de cerrar seus olhos ele decidiu enfrentar com valentia. Não tinha mais como invocar qualquer truque, mas ele nascera com um dom. Aprendeu a dominá-lo apenas depois de aprender sobre magia, pois essa era a natureza da divinação. E teve ajuda de seus companheiros, seus irmãos em armas e mágica e por isso, fechou seus olhos e pensou neles.
Ao abrir seus olhos brilhavam azuis, num fenômeno curioso que fez a fera deter-se por um instante.
- Pois fique sabendo, matador. Seus dias estão no fim. A chama que destrói a escuridão já está entre nós, embora ainda não saiba. E como você sabe, ele irá te destruir e restaurar a magia nos corações. Será derrotado e humilhado, e todo o terror infligido por você e pela sua raça malévola será esquecido, e ninguém mais temerá as noites. Hoje é apenas o começo de sua derrocada.
- Oras, não é que o infame e fraco fala? Destruirei seu campeão, e terei sua cabeça em meu pescoço para que todos saibam quem é o verdadeiro dono do mundo!
- Não será assim. Não tardarei mais minha morte, mas garanto que terá um gosto amargo, ainda que não hoje. Venha, monstro, e comece a cumprir sua sina.
A fera, ao ouvir isso, ficou hesitante. Nunca antes uma presa falara algo assim, ou agira dessa maneira. Como esse fedelho não tinha medo de sua morte, oferecendo-se para o sacrifício assim?
Mas de maneira alguma se deteria. Com passos cada vez mais confiantes e terminando num horrível encarar, abriu a bocarra a envolveu a cabeça do pequeno. Antes de terminar a mordida, ouviu:
- O fim para o começo.


No dia seguinte, a chuva não havia cessado. O mundo não parou, e nem haveria de parar. Naquela mesma cidade, dois garotos tomavam seu café da manhã antes de ir para suas escolas, O pai falava nervosamente ao telefone, resolvendo assuntos de seu trabalho antes mesmo de tomar seu café.
A TV estava ligada, passando o jornal matinal. Um dos garotos prestou atenção apenas em uma notícia, mas teve que se levantar para ir antes de ver a matéria completa. Por algum motivo, que ele não saberia dizer, aquilo o acompanhou durante toda a ida para a escola. Ao soar o sinal do começo da aula, ainda podia ouvir o repórter dizer:
- Um corpo de uma criança decapitada e desfigurada foi achado no Beco Triangular pela manhã.



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