quarta-feira, 29 de junho de 2011

Caminhava

Caminhava. Não andava vulgarmente, caminhava aproveitando todas as nuances que a noite lhe oferecia. A luz amarelada da iluminação pública realçava cada detalhe, cada ponto escuro que tentava esconder-se em meio a sombras. Observava e tentava compreender aquilo tudo. Absorver os contrastes, as penumbras, as idéias de mais uma noite que caía pelo mundo. Não havia espaço para pensar em sua vida, nas coisas que deixara em casa, na vigência do universo na existência humana. Apenas o negro, com todos os seus conteúdos e formas.
De repente, um estalo. Não foi algo que aconteceu, ou alguém que apareceu. Um pensamento que surgiu de forma espontânea, natural, sem qualquer razão ou propósito. Alguns chamariam de epifania, uns de insight, outros apenas admitiriam a existência dele. Chegou abrindo portas, liberando memórias, cheiros e significados. Trouxe razões à mostra, pessoas a sua presença, verdades derrubadas, mentiras sustentadas, com tanta força que não havia como detê-lo. Uma represa aberta inundou sua mente, varrendo e transformando o que quer que fosse tocado por suas águas. Um novo ser surgia dessas águas, abrindo seu caminho com braçadas largas e força épica. Vales destruídos, casas demolidas, montanhas derrubadas, e ele só. Imagens oníricas dançando, levantando novas razões de ser, e fortalecendo o recém-nascido, nutrindo-o e instruindo-o sobre o que esperar. Novos desafios, obstáculos a transpor e uma vitória apenas condicional à sua própria vontade.
Então, tão rápido quanto surgiu, ele sumiu. O tema poderoso do qual ele se originou voltou para seu lugar nas sombras, trancando novamente o que foi libertado. O choque havia sido tão poderoso que ele havia sido obrigado a apoiar-se num portão que estava por perto. De nada mais recordava, não sobrara um vislumbre do que havia sido isso, nem como libera-lo novamente.
Recompôs-se, acendeu um cigarro e prosseguiu. Não havia mais nada a procurar na noite, não importando a direção do olhar. Prédios com luzes acesas, casas apagadas, calçadas mal iluminadas, e só. Mas uma semente havia sido plantada aquela noite. Não era capaz de dizer o que era, nem se interessava naquele novo sentimento de ser. Foi uno com algo imaterialmente imenso, mas agora era apenas ele mesmo.
Quem vislumbra o todo jamais fixa seu olhar em um ponto novamente, eis a lição deixada.
Riu de suas pretensões filosóficas, acendeu outro cigarro e preparou-se para o amanhã.

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